Aventuras Primordias 2

As Aventuras dos Primordiais

Por Fábio Emilio Costa

Olá!

A idéia de Aventuras Primordiais! é escrever uma pequena série de contos interligados entre si passando-se no ambiente pulp que desenvolvi parcialmente, Primordiais. A idéia é mostrar uma ventura pulp e cliffhanger que dê uma noção do que se esperar em Espírito do Século. De qualquer modo, farei o melhor para que saia o melhor possível.

Bem depois dessa introdução besta, vamos ao que interessa:


Acima de Espoo, Finlândia, 12:00 hora local

- Está realmente frio! – disse Ingrid, se embrulhando a sua manta verde.

- Deseja meu casaco, Ingrid-kynjah ? – disse Radaj, começando a despir-se de seu casaco futurista que trouxe de Gaia 400X, sua “terra natal”, parte de um futuro distante.

- Não, obrigada… – disse Ingrid, em meio ao barulho dos motores de hélice do Lollipop, o hidro-avão de Hannah, que cruzava os céus sobre o Mar Ártico.

- Vocês dois, por favor se sentem! – disse Hannah, olhando os aparelhos. – A meteorologia está indicando rajadas de vento forte e turbulências. É melhor não ficarem em pé ou podem acabar se machucando.

Hannah estava vestida em um belo vestidinho rosa e casaco bem quente de cor verde, mas seu comportamento não era o de uma menininha doce, e sim de um piloto de aviões de verdade. Ingrid respeitava isso em Hannah: sabia que ela tinha perdido o pai muito cedo, durante a Guerra, sendo que ela viu seu pai sendo derrubado por ninguém menos que o lendário Barão Vermelho. Como Primordial, ela não tinha como chorar. Mas Ingrid ouvia às vezes ela chorando em seus pesadelos de uma criança que perdeu os pais, na casa que compartilhavam em Sligo…

Os dois adultos se sentaram em duas cadeiras, uma para co-piloto e outra para telegrafista. Hannah não precisava de ninguém ocupando ambas as posições, embora a ajuda fosse bem vinda.

Foi quando…

O avião começou a sacudir sem parar:

- O que está acontecendo, Hannah-kynrian ? – Radaj perguntou, temerosos – São…

- Sim, Radaj, estamos em uma área de turbulência! – disse Hannah – Se segurem. Vou baixar nossa altitude e tentar sair dela. Está muito forte, não tenho condição de passar por ela sozinha.

Hannah foi abaixando o avião normalmente, até que…

Um grande estrondo foi ouvido:

- O que está acontecendo? – disse Ingrid, olhando para Hannah. Ela percebeu o olhar de medo na pequena criança.

- Um dos motores explodiu e uma das asas foi com ele! Deve ter sido um raio ou alguma coisa! – disse ela – Vamos ter que pousar… Vai ser duro!

Hannah puxou o manche para trás com toda a (pouca) força que tinha. Ela estava com muito medo: uma queda poderia ser fatal. O avião foi se alinhando aos poucos, mas ainda assim a batida foi forte. O avião se espatifou contra o chão, e o mundo rodou e rodou. O outro motor voou longe com a outra asa no impacto, o corpo do avião despedaçando-se como a casca de um ovo e os três chacoalhando e chacoalhando dentro dos restos da cabine.

Quando tudo parou, Hannah olhou para os lados: Ingrid e Radaj estavam desacordados, aparentemente muito feridos. Uma linha vermelha na testa de Ingrid não era feita pelos seus cabelos naturalmente vermelhos. A própria Hannah se sentia machucada. Pegou a bússola portátil e um rádio comunicador:

- Mayday! Mayday! Aeronave Lolipop caída na região da Lapônia! Mayday! Mayday! Aeronave Lolipop caída na região da Lapônia! – Ela foi dizendo, enquanto saía da cabine e via a nevasca intensa.

Sem pensar, ela seguiu andando. Ela teve então a noção dos seus ferimentos: estava andando com dores e o corpo todo parecia que tinha levado uma imensa sova. Ela própria estava muito ferida, mas não podia desistir. Continuou andando a diante e a diante, falando e falando, a bússola enlouquecida conforme chegava perto do Polo Norte magnético. Até que seu corpo não agüentou mais e desabou.

- Mayday! Mayday! Aeronave Lolipop caída na região da Lapônia! Mayday! Mayday! Aeronave Lolipop caída … Aeronave Lolipop caída… Aeronave Lolipop … Aeronave Lolipop … Lolipop … Lolipop …

Ela foi perdendo as forças, um sono mortal se abatendo sobre ela, suas roupas de frio mal e mal a protegendo da nevasca inclemente. Ela tombou, seus olhos verdes olhando apenas pouco acima da neve.

E ela viu…

Uma pessoa com roupas colantes verdes, e botas de mesma cor. A visão embotada não deixava ela entender o que estava vendo. Ela sussurrou:

- Sal… ve…-os…

E fez-se escuridão.


Cidade do Natal, Polo Norte, Dia Seguinte, 20:00 hora local

“… ela está bem? Por Ceridwen, diga que ela está bem…”

“… ela vai ficar bem… Deixe ela descansar…”

“… pelos Cristais, se ela morrer, nunca me perdoarei!”

Hannah começou a voltar a si:

- Não se preocupem, ela só está inconsciente. Mas se Benhardt não tivesse a resgatado a tempo… É muita sorte terem caído perto da zona de vigilância. Melchior não ficou muito contente com isso, mas de outra forma, vocês estariam mortos. E o Pai Natal não gostaria nada disso.

Aos poucos, Hannah foi abrindo os olhos:

- O… que… houve…

- HANNAH!!!!

Hannah sentiu algo a abraçando: tinha um cheiro gostoso, de eucalipto e menta, jasmim silvestre e rosas, e outras flores. E uma sensação macia na bochecha, mas algo úmido e salgado descia. Ela então terminou de abrir os olhos.

Ingrid Ni Braoahbahain estava chorando, agarrada a ela.

- Hannah, que bom! Você foi muito corajosa! – Hannah viu que a testa de Ingrid estava com bandanas de linho branco, assim como partes do braço. No fundo do quarto, Radaj também estava com curativos: seu braço direito estava em uma tipóia e no rosto uma gaze era segura por uma fita adesiva.

- O que houve?… Onde estamos?… - disse Hannah, ainda sentindo a moleza de quem passou muito tempo inconsciente.

- Você está bem, Hannah Striker? – disse uma voz.

Ela olhou para o lado e viu uma bela menina, mas…

- Você é uma….

As orelhas levemente pontudas e a roupa entregavam o ser. O vestido era em tons vivos de verde escuro e vermelho carmesim. Era possível, abaixo do vestido, ver-se os meiões branco-e-vermelhos e os sapatos de veludo verde. Um chapéu pontudo vermelho ficava acima dos cabelos fartos e marrom-avermelhados, amarrados às costas em uma trança.

O rosto redondo daquele ser estranho era bonito: grandes e gordas e rosadas bochechas e lábios que pareciam nunca deixar de sorrir, um narizinho redondo e arrebitado e olhos de um verde muito, muito profundo, ao mesmo tempo novo de esperança e velho de sabedoria. As orelhinhas que lhe saiam aos lados eram levemente mais pontudas e maiores que as de uma pessoa normal.

- Sim. Meu nome é Liana. Você é Hannah Striker, não? Era você que pilotava aquele avião?

Hannah não sabia o que pensar: ainda estava confusa com tudo o que estava acontecendo. Apenas meneou a cabeça em resposta à pergunta que lhe foi feita.

- Vejo que está bem, mas deve ficar deitada. Por muito pouco não morreu congelada. Vou trazer algo para você comer. Acho que uma boa sopa quente deve servir… – disse a duende Liana ao sair do quarto

Depois dessa visão confusa, Hannah reparou aonde estava:

O quarto com porta redonda não era muito alto: Radaj quase batia com a cabeça no teto baixo, com pouco mais de 2 metros de altura. As proporções de todos os objetos e as cores vibrantes lembravam as casas de boneca que tinha quando seu pai ainda vivia. Ingrid e Radaj estavam vestidos em roupas também em cores vibrantes como o quarto: Radaj com calças em azul-marinho e colete amarelo encimando uma camisa verde, Ingrid com um vestido vermelho carmesim com filigranas e cinzidos dourados, uma faixa verde-musgo na altura da cintura.

- Onde estamos? Lembro só da bússola enlouquecida…

- Nem eu sei direito. – disse Radaj – Mas é um local realmente estranho. Vimos vários desses faeryn andando para cima e para baixo. Eles não parecem com nada de minha terra.

- Na verdade, eu sei onde estamos. – disse Ingrid – Estamos em um Reino Exterior.

- Mas como? – questionou Hannah – Pensei que os Reinos Exteriores fossem isolados de tudo na Terra.

- Você viu o portal para Aztlan e viu Atlântida quando salvamos L’Khurn e selamos um acordo de paz com os atlantes. Nenhum desses locais estão fora da Terra, por assim dizer, mas não são fáceis de chegar. É só lembrar que você mesmo disse que sua bússola estava enlouquecida.

- Mas onde estamos? Que reino é esse?

- Só existe um lugar como onde estamos. Vi ele apenas uma vez, durante meu tempo como noviça da Torre Silenciosa, próxima ao Tor de Avalon, de onde víamos Morgana fazer os sagrados rituais com a Taça e com o Prato, com a Espada e com a Lança, diante do Lago Sagrado de águas límpidas.

- E que local é esse onde estamos? – questionou Radaj

- Dinas Nadolig, a Cidade do Natal.

- A Cidade… do Papai Noel? – disse Hannah, com o rosto ao mesmo tempo esperançoso e cético.

- Sim… As cores do natal e do Yule estão em toda parte, mesmo nas roupas que nos ofereceram. O vermelho carmesim, do sangue da vida. O verde musgo, da natureza que ressurge. O amarelo dourado, do Sol que volta a distribuir seu calor. O azul marinho, da água que volta a correr. Os símbolos estão em todos os locais: o visgo, o carvalho, o freixo, as torcas. Os símbolos universais do Natal e do ressurgimento da vida.

- Ingrid-kynjah, o que é esse Papai Noel? – disse Radaj – Já viu alguns desse tempo falar sobre esse ser. Quem é ele?

- Papai Noel, O Bom Velhinho, Pai Natal… Todos são expressões da crença das pessoas no ressurgimento da vida. É o momento em que ressurge o Grande Deus, dado à luz pela Grande Deusa. Os cristãos também simbolizam o nascimento de Jesus, em quem colocam suas crenças. Todas elas tem o mesmo funamento, o ressurgimento da vida.

- Mas esse Papai Noel existe?

- Sim… – disse Ingrid

- Meu pai se vestia de Papai Noel todos os anos! – disse Hannah

- Seu pai fazia isso para manter você acreditando em uma verdade que a Ciência e a Mente não explicam. Talvez da maneira errada, mas seu pai procurava lhe fazer entender que nem tudo é o que é. Você deve saber mais do que nunca agora isso.

Hannah acenou com a cabeça.

- Eu encontrei apenas uma vez o Pai Natal. Era época de Yule, e ele tinha que fazer sua tradicional entrega de presentes.Ele resguardava os mais pobres e os mais infelizes. Lembro de um garoto que andava com ele. Era humano mesmo, e não era muito alto. De certa forma, lembrava você, Hannah. Fico imaginando se ele está bem.

- Estou bem sim, Ingrid ni Braoahbahain – disse uma voz gostosa e profunda. – É bom saber que lembra de mim…

- PAPAI NOEL! – gritou Hannah, feliz.

- Sven… Carlsberg? – disse Ingrid, agora incrédula.


Cidade do Natal, Polo Norte, 6 dias depois

Hannah estava no seu novo quarto. Na verdade um quarto maior, mas ainda assim com as mesmas cores vibrantes e proporções de uma casa de bonecas. Uma grande lareira crepitava chamas fortes ao redor das três camas e do pequeno sofá. Uma mesinha de centro tinha uma bandeja com chá e scones e biscoitos de gengibre e outras coisas boas de se comer.

Em um canto, sentada em uma cadeira de espaldar alto, Ingrid lia um antigo livro que carregava consigo. Hannah sabia tratar-se do seu “Diário das Sombras”, um diário secreto que apenas Ingrid deveria ler, com várias coisas que ela precisava saber sobre o seu treinamento como Sacerdotisa do Reino de Avalon. Estava escrito na língua de Avalon, o Avalönenn. E, embora soubesse algumas palavras nesse idioma, Hannah não sabia ler ele.

- O que você está lendo, Ingrid-kynjah? – disse Radaj, depois de ter feito seu treinamento diário com a Espada de Gel Cinético.

- Estou tentando lembrar uma coisa… Não acredito que o Pai Natal soubesse meu nome inteiro. Apenas Sven sabia…

- Mas ele não pode ser Sven?

Bateram na porta.

- Quem é? – disse Hannah

- Sou eu, Liana! – disse a pequena duende que era agora uma espécie de camareira para eles.

Liana entrou: hoje vestia vestido amarelo sobre camisa branca de mangas bufantes e chapéu branco, com meiões amarelo-e-vermelho e sapatos verdes.

- Pois não?

- O Pai Natal pediu para vocês irem até o Salão dele. Disse que vocês devem se aprumar e que podem usar qualquer coisa que esteja nos armários. Ele apenas pediu ao homem de nome estranho – ela disse, fazendo uma reverência a Radaj – que deixe sua arma aqui. Nada será tomado.

- Entendo… Muito bem, diga a ele que iremos.


Os três entraram no Salão de trabalho do Papai Noel: Hannah decidiu que era momento de se vestir como menina, e não como ocasionalmente se vestia, usando roupas de menino. Vestiu um vestido verde-musgo com cenzidos em dourado e amarrou os cabelos em duas maria-chiquinhas com fitas vermelhas e verdes. Pegou um par de sapatilhas verdes e meias vermelhas por cima de meiões verdes. Ingrid estava vestindo um vestido de veludo vermelho com um capuz também vermelho, usando sapatos verde e meias vermelhas. Radaj usava colete amarelo e camisas brancas com calças de cor branca também.

- Desculpem-me incomodá-los. Sei que ainda estão se curando dos ferimentos daquele acidente terrível. Mas quero aproveitar e saber o que vocês estão sabendo do mundo lá fora. Ainda estamos em outubro, então está muito longe a data de eu correr o mundo na minha viagem de todos os anos… Mas vejo que têm questões a me fazer.

- Sim – disse Ingrid – Você é mesmo Sven Carlsberg? Aquele garoto era mais novo que eu quando visitei Dinas Nadolig anteriormente… Como poderia ter ficado tão velho quanto o próprio Pai Natal?

- Sou eu mesmo, Ingrid. – disse o Pai Natal – Eu concluí a Sucessão, Assinando a Santa Cláusula. Acho que você sabe do que se trata.

- Então era verdade. – disse Ingrid, impressionada – Nunca existiu UM Pai Natal, e sim vários.

- Exato. – disse Sven, dando uma risada gostosa que contagiou o rosto de Hannah – Então ela é Hannah Striker?

- Sim, Papai Noel.

- Seu pai era um bom homem. É triste que bons homens morram em coisas como guerras, mas um homem que foi honrado até mesmo por seus inimigos era um homem digno. Sim, – disse ele, ao ver a cara de espanto de Hannah – sei sobre o Barão Vermelho e sobre como, após ele derrubar o avião de seu pai, ele se levantou do assento do avião dele e o saldou como um valoroso homem. Espero que Primordiais como você um dia acabem com a guerra, mas esse é um sonho que eu não posso realizar.

- Mas o que desejo saber é para onde vocês iam? – perguntou Sven. Ingrid reparou no olhar de Sven, ou melhor, do Pai Natal. Seu olhar era penetrante e profundo, e mesmo com o rosto ainda levemente sorridente, havia uma seriedade de quem se preocupa com os acontecimentos de fora.

- Procuravamos ver Angelus, o Arcanjo. – disse Ingrid

- O que uma Sacerdotisa de Avalon iria desejar com um Arcanjo? Pensei que Avalon não gostasse muito de cristãos… – disse Sven, sorrindo levemente.

- Você sabe tão bem quanto eu que Avalon se afastou do Mundo Interior apenas porque estávamos sendo perseguidos pela Igreja. Mesmo hoje a travessia pelas Brumas é dificultada pelos monges da Ordem de São Silvestre. Mas não acredito, nem minhas superioras também, que essa seja a vontade de Deus, mas sim de homens que confundiram seus deveres com o direito de dizer aos outros o que é certo ou errado.

- Compreendo… Mas por que procuravam Angelus?

- Por isso. – disse Ingrid, mostrando o Filigrana parcialmente destruído a Sven.

Pela primeira vez Ingrid viu o rosto do Papai Noel, ou melhor, de Sven Carlsberg sério. Havia um ar real de preocupação em seu rosto:

- Liana, quero que traga algo para comermos aqui. E também procure Melchior e Gaspar. Precisarei dos dois. Benhardt se não estiver ocupado deve vir também. Diga-lhes que é urgente. – disse ele em voz baixa a Liana, que fez uma reverência e saiu em silêncio.

- Ingrid, você sabe o que é isso, não? Um Filigrana escrito no idioma maldito do Reino das Profundezas…

- Atlantis? – disse Hannah – Mas a gente não tinha…

- Não, pequenina, L’Khurn não traiu o acordo que foi feito. Isso não é Atlante, mas sim vindo do idioma maldito de R’Lyeh!

O som daquele local fez Hannah soltar um gritinho de criança realmente assustada e se encolher atrás de Ingrid.

- Prometo não mais falar esse nome ignóbil aqui! – disse Sven, sério – Não se preocupe, Hannah, pois não mais mencionaremos tal nome. E aqui é razoavelmente seguro. Vários Papais Noéis colocaram proteções especiais por toda a Cidade do Natal e ninguém pode entrar aqui se não desejamos. As proteções aqui são quase tão poderosas quanto as Brumas que ocultam Avalon.

- Mandou-nos chamar, Papai Noel? – disse um dos duendes que entraram pela porta.

Um deles era gordinho e baixo, usando óculos com armação dourada e vasta costeleta. Um cavanhaque fino e pontudo moldava-se de maneira estranha no queixo redondo como o resto do rosto. Olhos marrons vivos, como duas avelãs, podiam ser vistos por trás das lentes, que se apoiavam na armação apoiada no nariz pontudo e fino. As roupas eram brancas em cima na camisa e verdes nas calças largas com suspensórios da mesma cor, com detalhes em dourado e vermelho. Um colete de veludo carmesim e um chapéu pontudo também vermelho terminavam as roupas. Calçava botas longas.

Outro usava uma camisa amarela e calças marrons. Um gorro vermelho lhe descia por trás da cabeça. O rosto era imberbe e sério, e comparado com os rostos sorridentes que Hannah havia visto até aquele momento era um pouco assustador. Uma pequena espada pendia-lhe à cintura e um arco às costas. Pareciam de brinquedo, mas havia algo que aparentava ser muito real naquilo. Botas altas, quase na altura do joelho e um colete de cor marrom escura lhe terminavam a forma.

O último na verdade parecia muito mais “humano” que os demais. Parecia um garoto da mesma idade de Hannah, com olhos e cabelos escuros, vestido em jaqueta verde escura e camisa verde de tom mais claro, com calças na mesma cor, assim como sapatos e um toucado, todos no verde escuro. Um cachecol vermelho e branco era a única cor diferente nele. Pareceria um garoto, se não fosse as orelhas pontudas e levemente alongadas.

- Esses são meus melhores auxiliares e amigos na Cidade de Natal. – disse Sven – Gaspar, nosso sábio e estudioso, Chefe dos Pesquisadores; – disse Sven, apontando o duende gordinho, que fez uma mesura cumprimentando os convidados – Melchior, o melhor lutador que temos aqui, Chefe dos Guardiões da Cidade do Natal; – apontou agora o duende de rosto sério – e Benhardt, que é responsável pela Cidade quando não estou aqui. – disse, apontando o duende que parecia uma criança comum.

- Por que fomos chamados, Pai Natal? – disse Gaspar.

- Por causa disso… – disse Sven, mostrando o Filigrana.

- O que? – disse Melchior – Foi um deles que…

- Não foi nenhum deles que invocou isso, Melchior. Eles também foram atacados.

- Então não fomos os únicos? – disse Benhardt – Imaginei que não seríamos.

- Vocês também foram atacados? – questionou Ingrid.

- Talvez seja melhor vocês mesmos verem. – disse Sven – Benhardt, pode providenciar transporte?


A viagem no carrinho de trem pela Cidade de Natal tinha algo de mágico: era como estar em um cruzamento de presépio, vilarejo alemão e casa de boneca.

Todas as casas tinham proporções de brinquedo e eram amplas e bonitas e coloridas. Como Ingrid dissera, Hannah pode ver que por todos os lados haviam cores, sempre vibrantes: vermelho, amarelo, verde, em alguns lugares o azul e o branco, além de tons de laranja e rosa em alguns locais. Visgo, azevinho, carvalho, os símbolos do Natal: tudo isso podia ser visto.

As pessoas, tanto duendes quanto alguns seres humanos que habitavam o local, podiam ser vistos trabalhando em comunidade e ordem, embora risos, conversas animadas e música podiam ser percebidas por todos os lugares.

Foi quando eles começaram a parar perto do que aparentava ser a saída de um túnel. Parecia escuro e frio e dava muito medo:

- Chegamos! – disse Benhardt. – Foi aqui que fomos atacados.

Olhando de perto, Hannah via melhor: na verdade esse local deveria ser igual ao resto da Cidade do Natal, mas estava queimada e destruída: podia-se ver que as pedras tinham sido derretidas por uma quantidade imensa de calor.

- Pelos Cristais! Que lantajhar aconteceu aqui? – disse Radaj. Ingrid correu para um canto e tocou as pedras, sussurando algo com os olhos fechados.

Hannah correu aonde estava os restos de uma casa e pegou um pedaço de tecido queimado e o cheirou:

- Isso aqui é mais fedido que querosene queimado! – disse Hannah, jogado o pedaço de tecido ao chão e torcendo seu narizinho de botão, enojada.

- Alguma criatura queimou tudo aqui… – disse Ingrid – Mas… Ela não parece ter forma… Parecia uma bola de fogo, como um fogo-fátuo, mas mesmo olhando agora pela psicometria… Posso ver que ela tinha algo nela, como um Mal além do Mal, algo sinistro, além do Diabólico, além do que qualquer coisa que uma pessoa pode pensar…

Ingrid abriu os olhos assustada. Olhou ao vazio e desabou a chorar, orando e clamando por suas divindades:

- Deusa! Deusa! Proteja a nós, suas servas! Proteja a nós, ó Ceridwen!

Hannah correu para abraçar Ingrid. Hannah sabia que Ingrid estava sofrendo:

- Ingrid! Acabou… Está tudo bem… – disse Hannah, abraçando-a forte, enquanto a mesma chorava copiosamente.

- O Mal que eu vi… – disse Ingrid, entre lágrimas – Era um Mal além do Mal, além de qualquer coisa que podemos pensar. Um Mal que não se preocupa com submissão, mas apenas com destruição…

- É verdade. – disse Gaspar – Pesquisei nos tomos que temos aqui e não encontramos nada sobre essa criatura de fogo que destruiu essa vila.

- Perdi bons homens aqui. – disse Melchior – Eles morreram bravamente, mas não havia nada que pudéssemos fazer. Precisamos usar muita água e terra para destruir aqueles monstros… Apesar que não sei se os destruímos.

- Duvido. – disse Benhardt – Se tudo o que foi dito é verdade, essa criatura é algo muito maligno e poderoso. De antes da Aurora dos Tempos… Não é, Pai Natal.

- Sim… – disse Sven – Minhas Memórias Antecessoras dizem isso…

- Memórias Antecessoras? – disse Ingrid, se recompondo lentamente.

- Desde que Assinei a Santa Cláusula e concluí a Sucessão, tenho acesso às memórias de meus antecessores… Alguns deles viram criaturas similares, mas nunca nada como isso… Sempre achamos que a Cidade do Natal era segura… Mas como eles entraram? – disse Sven.

- Esperem! – disse Hannah, observando um canto – Tem algo aqui…

Hannah estava mexendo nos destroços de uma casa que ainda estava inteira…

- Isso aqui é… – disse Hannah, mexendo nos vários sacos.

- Triagem de cartas. – disse Gaspar – Aqui damos uma ajuda ao Pai Natal para separar as cartas das crianças boas e ruins.

- Será que alguém quis se vingar por receber carvão? – disse Hannah.

- Duvido. – falou Melchior – Mas existe um detalhe… Se aqui foi o ponto de onde começou a invasão… Como esse local não está totalmente destruído?

- Espera… – disse Radaj, observando as paredes calcinadas da casa – Existe algo estranho na porta… Alguém deve ter saído normalmente… E então…

- O que? – disse Melchior

Radaj caminhou até os restos de outra casa, totalmente destruída…

- Alguém sabe o que era aqui?

- Uma central dos Pesquisadores! – disse Gaspar, assustado

- Então… – disse Sven.

- Ingrid, você consegue tentar aquele truque de ver o que aconteceu de novo aqui? – disse Hannah

- Não se esforce demais, Ingrid-kynjah! – disse Radaj, observando-a – Você está fraca demais…

- Não… Estou melhor agora… – disse Ingrid, olhando para Radaj com olhos firmes, ainda que úmidos de lágrimas – Se eu ver por pouco tempo não terá problemas….

Ingrid tocou o chão, fechou os olhos e murmurou…

- Alguém trouxe uma carta estranha…. O envelope era escuro… Era uma criança, mesmo para o padrão dos duendes… Ela mostrou para um outro… Ele o abriu e o Filigrana se ergueu e… – Ingrid abriu os olhos.

- Deusa! Grande Mãe! Quem em sã consciência faria isso? – disse Ingrid, revoltada.

- A culpa não foi da criança em questão… – disse Sven

- Não foi isso que quis dizer. Quem enviaria uma carta como essa? Que tipo de monstro é esse que mandaria uma carta com um Monstro de Fogo dentro dela?

- Alguém que odeia o ser humano… Ou ao menos que odeia outros seres humanos… Mas quantos ataques já aconteceram? E onde mais eles irão atacar? – questionou-se Melchior

- Bem, sabemos o que está acontecendo. – disse Sven – Acho que mais do que nunca vocês devem localizar Angelus. Benhardt, chame Eliazar e outros mecânicos. Recolham os destroços do avião de Hannah e o reconstruam. Melchior: coloque todos os Guardiões de prontidão. Gaspar, precisaremos de todos os Pesquisadores obtendo informações úteis para eles. Quando a vocês, Ingrid, Hannah e Radaj, é melhor que descansem…

- Lollipop foi modificado por mim! – disse Hannah – Posso ajudar nesse caso.

- Eu sei alguma coisa sobre esses monstros, e não posso ficar parada assistindo isso. – disse Ingrid.

- Pelos Cristais, fui treinado nos Metroplexos. Se uma criatura é hostil, posso enfrentá-las sem pestanejar. – disse Radaj.

- Sou grato pela ajuda. – disse Sven – Não a tempo a perder. Vamos então.


Alguns dias depois, Lollipop estava totalmente reformado, uma pintura amarela e branca no Hidroavião. Ele foi reabastecido de suprimentos e muitas roupas e comida.

Todos receberam presentes: Radaj duas belas espadas curtas de prata, Ingrid dois punhais trabalhados em jóias e prata anã e Hannah uma tiara e várias fitas.

Presentes simples, mas que simbolizavam a esperança dos habitantes da Cidade do Natal de que fossem resolver o problema dos monstros terríveis que destruíram uma vila dentro da cidade.

- Espero que saibam o caminho. – disse Sven.

- É fácil. – disse Hannah – É seguir a segunda estrela à direita e então direto, até amanhecer.

- Isso é para a Terra do Nunca! – disse Sven, rindo – Não para o Templo do Senhor, onde vive Angelus.

- Eu sei o caminho… – disse Ingrid – Na verdade, nunca existe um caminho fixo, mas sei o caminho adequado.

- Bem, nos despedimos aqui. – disse Sven – Espero que sejam bem sucedidos. Ainda quero ver um certo par de meias amarelas em uma chaminé de Sligo. - ele terminou, bonachão, fazendo Hannah corar.

- Esperamos que sim. – disse Radaj

Hannah ligou Lollipop.

- OK… Motor ativado. Podem abrir os portões. – disse ela pelo rádio.

Melchior e seu amigo, Balthasar fizeram um sinal de positivo da torre de vigilância. Os portões de uma saída por água da Cidade do Natal foram abertos.

- Beleza… Sem nevasca ou ventos de rajada. A decolagem não deve dar problemas. Vejamos como você ficou, Lollipop. – disse Hannah, usando os manches para aumentar a velocidade.

O hidroavião voi deslizando pela água, até sair para uma baía que dava no mar Ártico.

- OK, V1… Rotação… V2… – disse Hannah, decolando. – Lollipop está magnífico! Erguendo pranchas de aterrizagem na água.

- Então podemos seguir adiante? – perguntou Ingrid.

- Sim. Sente na poltrona do co-piloto e vá dizendo a direção a tomar-se…