A lua alcançava o ponto mais alto no céu, enquanto as últimas luzes dos lampiões a gás do McNash & Sullivan Circus and Shows se apagavam. Apenas algumas velas dentro das barracas e carroças do circo estavam acesas.
Em uma delas, um senhor de rosto envelhecido, ainda que muito vigoroso, observava o pêndulo que segurava sobre o mapa dos Estados Unidos. Seu fraque e cartola, que usava em suas apresentações, estavam sobre um baú com todos os pertences que tinha.
Os olhos fixaram-se em um ponto qualquer, onde o pêndulo parou, por meio de poderes além da compreensão de pessoas comuns. Mas esse senhor não era e nunca foi uma pessoa comum. Ele tinha uma missão:
- Ongelooflike! Inacreditável! Tão perto, e ao mesmo tempo tão longe! - disse ele, deixando escapar uma palavra em um idioma pouco conhecido na América e que a muito ele não usava, o afrikaans, o idioma dos boeres, os fazendeiros que foram à África do Sul e, enfrentando uma série de adversidades e adversários, tanto dos povos nativos como os Xhosa e os Zulu, como dos ingleses e portugueses, dominaram aquela terra.
Ele viu muitas conquistas durante o século anterior, quando entrou para o Clube do Século, um grupo que visa o crescimento da humanidade.
Como um artista e conhecedor de muitas coisas, obviamente ele tornou-se o Espírito dos Estudos, procurando demonstrar que existem muitas coisas que uma pessoa pode fazer e que a excelência na educação permite você a fazer tudo.
Mesmo ser um charlatão honesto, um Munchausen do seu tempo, assumindo a alcunha de Don Cagliostro, Senhor do Mesmerismo, da Hipnose e do Mentalismo.
O que é muito curioso, sendo que sua função é mostrar que o conhecimento deveria sobrepujar coisas como o charlatanismo e o misticismo (dos quais ele acaba dependendo).
Na realidade, Frederick Van Der Merwe nasceu no dia 1° de Janeiro do Ano de Nosso Senhor de 1800, a virada do século XVIII ao XIX, na Cidade do Cabo, onde seu pai era um diplomata dos Boer e a sua mãe uma atriz inglesa. Com o tempo, acabaram se vendo em uma situação em que era melhor fugir de sua terra natal e viajar para a França Napoleônica, onde tornaram-se artistas.
Mesmo pequeno, com menos de cinco anos, já sabia ler, escrever e tinha bom conhecimento em música, matemática e retórica, sendo tutelado em casa por seus pais, Andraas e Melody. Aos 10 anos já atuava nas comédias e dramas encenadas por seus pais, quando começou a formar seu alter-ego de Don Cagliostro.
Durante todo o século XIX, a partir do momento em que alcançou os 18 anos, ele não envelheceu nada, e pode presenciar e estimular uma série de eventos, inclusive a viagem de Charles Darwin no Beagle (ao menos indiretamente) e o lançamento por Karl Marx de Das Kapital (uma reflexão que acabou assumindo, para sua infelicidade, um papel panfletário).
Ele também enfrentou grandes inimigos, incluindo o perigoso e virtualmente imortal Doutor Matusalém, dono de poderes autodenominados matemágicos, supostamente tomados de Sócrates e dos Hipocráticos.
Mas suas façanhas são coisa do passado: como todos os demais Espíritos, como o Fantasma Cinzento e outros heróis do passado, ele sabia que logo o Tempo cobraria seu preço.
A partir do dia 1° de Janeiro de 1900, uma nova geração de Espíritos (e de suas contra-parte, as Sombras) surgiram, representando as ambições e esperanças do novo século (e os esqueletos deixados no armário no século anterior). E a partir de então, ele, e os Espíritos do Século anterior passaram a deixar esse mundo. Sua última missão seria encontrar, com a ajuda do Clube do Século, um desses Espíritos.
Essa era a única explicação para ele abandonar sua antiga função como arquivista e documentarista do Clube e voltar ao campo, mesmo depois de sustentar ferimentos terríveis de sua última batalha, contra a Sombra da Indústria.
Analisando os recentes eventos envolvendo trabalhadores sendo espancados e mortos por patrões, foi uma Vitória de Pirro a derrota de Leonard Charlesmagne.
O método que aprendeu era simples e um tanto impreciso, o que lhe gerava frustração, mas aparentemente dessa vez ele estava certo: durante a apresentação da matinê ele percebeu uma leve presença estranha. Não as poderosas e malignas emissões de Kult-ah-saleh, a antiga Sombra do Místico que dominou Paris por meio de hipnose e antigas práticas mágicas egípcias, perdidas desde tempos longínquos. Mas uma presença leve e, porque não dizer, acalentadora.
Frederick sai de seu transe e decide que não adianta nada pensar nisso agora: é melhor deixar para o dia seguinte, pois o cansaço enorme que sente está pedindo um pouco de sono. Curiosamente, nunca sentia muito sono durante o século XIX.
- Acho que logo chegará meu dia. Espero antes cumprir minha tarefa.
Ele resolve se trocar e apagar a luz do lampião, a luz da lua lhe bastando para ir à cama.
- E isso é para aprender a deixar de ser mentiroso. - grita o homem, enquanto desce a cintada nas costas do menino rechonchudo, golpeando-o com toda a força que tem. O garoto não reage e nem grita, apesar das lágrimas que caem do rosto.
Curiosamente, os cabelos levemente avermelhados do garoto até conseguiriam enganar, mas de outra forma ele não parece em nada com o homem que lhe bate. Afinal de contas, Nicola Castrogiovanni é um órfão.
Nicola não se lembra de nada da Toscana, onde seus pais viveram e onde ele nasceu, e lembra-se muito pouco do rosto de seus pais, embora lembre-se em especial do rosto bonito de sua mãe, deitada no caixão no qual ela passou a dormir até o dia do Retorno de Jesus, quando ela voltará a viver.
Essas lembranças continuamente o alimentam com esperança, mesmo após ser trocado de lar adotivo para lar adotivo, muitos deles mais interessados nos benefícios do governo para cuidar dele ou em ter mais uma mão para ajudar no trabalho, nenhum deles o querendo por carinho ou por gostarem dele.
Ele nunca entendeu porque as pessoas não gostavam dele, mesmo sendo bem educado e fazendo as coisas direitinho. Ele sempre se perguntou porque as pessoas achavam ele chato ou bobo. Ele apenas acreditava que tudo acabaria bem, então não era acostumado a reclamar ou negar-se a fazer qualquer coisa.
Mesmo depois de apanhar tanto.
Mesmo sabendo que estava apanhando pelo seu irmão adotivo, um grande valentão sem coragem.
E mesmo sabendo que isso vai lhe custar passar a noite no estábulo.
Mas tudo bem: ao menos o feno é quente e os animais gostam dele.
Antes de sair da casa, sua mãe adotiva, talvez a única que goste um pouquinho dele, entrega-lhe um embrulho, que normalmente era o sinal de que ele deveria passar a norte no estábulo.
- Nicola, o John vai estar melhor amanhã. E quem sabe tudo não se resolva. - ela diz. Ele percebe que o volume está um pouco maior que o normal: normalmente ela apenas embrulha apenas um pijama velho que ele usa no estábulo.
Nicola decide não questionar e sai de casa. De qualquer modo, valeu a pena.
A Srta. Prescott lhe deu um par de ingressos para o circo por ter ido bem na lição de soletrar. Seu irmão roubou os ingressos, mas ele acabou conseguindo um outro graças a um dos homens do circo, que pediu ajuda na divulgação. Como Nicola já vendia os jornais da cidade, nada mais fácil que enfiar os panfletos dentro dos jornais para ajudar a divulgar o circo.
Acabou que o circo estava lotado, mas ele conseguiu ainda um bom lugar para ver tudo, inclusive os truques de Mentalismo, que o fascinava. Aquele homem altivo, Don Cagliostro, lhe parecia tão poderoso e confiante que o fascinou. Havia algo nele que desejava ser tão poderoso e altivo quanto Don Cagliostro.
Por fim, quando chegou tarde em casa, seu pai adotivo achou que ele ficou com o dinheiro dos jornais para comprar o ingresso e gastar no circo. Quando ele contou a história toda, ele foi acusado de mentiroso e então começou a surra.
Quando Nicola chega ao estábulo e abre o pacote, há uma carta nele:
Por favor, Nicola, fuja! Meu marido quer lhe matar e ocultar seu corpo! Esqueça que existimos e desapareça! Não quero que algo ruim aconteça com você, mas não quero que nada aconteça por sua causa! Estou colocando algumas coisas úteis para você. Fuja enquanto ainda tem chance!
Nicola olha assustado, pensando se era verdade isso. Então ele olha o resto do pacote: dentro do embrulho tem uma pequena sacola de couro com seus livros da escola e roupas, além de alguns papéis que ele sabe que são seus papéis de adoção e seus documentos.
Ela estava lhe oferecendo, de certa maneira, a liberdade!
Nicola, apesar de dolorido pelas cintadas, olha com um ânimo maior. Ele dá a volta por trás do estábulo, atravessa pelo lado o chiqueiro e caminha pela plantação de trigo até chegar na estrada que leva à cidade.
Nicola olha para ambas as direções na estrada. Ele sabe que pode tentar ir de volta ao orfanato, mas provavelmente isso significará ser mandado de volta à essa casa onde ninguém gosta dele e, onde parece, ele estará risco de morrer. E a cidade mais próxima fica a muitas milhas, certamente mais do que um dia de caminhada. A estação de trem está fechada agora, e com certeza ir à polícia não vai adiantar.
Então lhe ocorre ir ao circo. Na pior das hipóteses, ele fugirá com o circo. Na melhor, irá até alguma cidade maior onde tentará a sorte. Afinal de contas, já tem 10 anos: se já consegue vender jornais, deve ter algo que seja capaz de fazer na cidade.
Ele caminha durante algumas horas no meio da escuridão da estrada, tomando cuidado com os caminhos mais escuros: cobras e outros animais selvagens podem ser muito sorrateiros. Nicola já ouvira histórias mais do que suficiente de jovens que, fugindo de casa, acabaram sendo atacados por animais selvagens e encontrados mortos, as tripas sendo disputadas por abutres famintos. Então ele caminhou com calma pelo caminho.
Por fim, ele consegue chegar ao circo, que é um pouco assustador com todas as luzes apagadas, a escuridão dando um ar tétrico às tendas e carroças do mesmo. Ele observa todos os animais dormindo, procurando um local onde possa encostar o corpo. Ele acha uma árvore onde ele se encosta e o cansaço (aumentado pela dor das cintadas) faz com que ele apague em um sono profundo tão logo coloque o embrulho com suas roupas abaixo de sua cabeça com travesseiro.
- Ei, garoto! Não deveria estar na escola? - Nicola escuta, enquanto sente alguém o cutucando.
Ele vai se espreguiçando e abre o olho, ao ver uma pessoa bem baixa, quase do seu tamanho, o cutucando. Ela está sorrindo, apesar de estar com o nariz meio torcido por algum motivo. Quando ele acorda o bastante para sentir cheiros, ele percebe que o motivo do nariz torcido: por algum motivo ele está bem fedido!
- Puxa, você devia estar realmente morto de sono, ao ponto de não perceber que deitou perto do ninho de uma mamãe gambá. É melhor sair daí antes que ela te dê mais uma borrifada fedida. - diz a pessoa pequena, com uma voz um pouco esganiçada.
Nicola percebe que a pessoa falando com ele é um anão: ele parece bastante com uma pessoa adulta, mas bem pequena. O sorriso é bacana, e ele veste algumas roupas bem práticas: uma camisa de algodão e calças com suspensórios, um chapéu de brim bem velho e sapatos quase tão velhos. O cabelo dele é escuro e os olhos são castanhos como o de uma castanha.
- Parece que viajou muito. A Mary vai te arranjar um banho e um bom mingau para forrar o bucho. Claro que você vai pagar, certo? - ele diz.
- Não tenho dinheiro, senhor…
- Pode me chamar de Pyg. Meu pai teve a ideia de me chamar de Pygmalion, então todo mundo aqui no circo me conhece como Pyg. - ele responde.
- Eu sou Castrogiovanni, senhor. Nicola Castrogiovanni. Eu fugi de casa. Não tenho nenhum dinheiro, portanto não posso pagar com ele, mas se for o caso, posso trabalhar para pagar. Sou bom em arrumar coisas e tal.
- Espera um pouquinho: acho que lembro de você. Você foi o garoto que ganhou o ingresso distribuindo panfletos dentro dos jornais. - disse Pyg
- Sim… - diz Nicola, enquanto Pyg o leva até o circo, onde as pessoas começam a olhar estranho para Nicola. Obviamente, quando você está fedendo a gambá as pessoas o estranham.
É quando Pyg o leva até uma mulher bastante bonita, com um tanto de sangue Romani nas veias (pelo que Nicola pode perceber), e lhe conta sua história. Então ele percebe que tem algo errado, pelo olhar de horror que ela faz.
- Menino, acho que pode ser que doa um pouco, mas você precisa tirar essa camisa e precisa tirar ela JÁ. E não apenas pela borrifada da mamãe gambá! - diz a mulher - Meu nome é Mary, e sou a vidente do circo. Além de cuidar da alimentação dos artistas e trabalhadores, entre outras coisas.
Ela puxa a camisa de Nicola, que sente uma boa dor.
- Puxa vida! Se essa era a vida que te davam em casa, você está mais que certo em fugir! - ela diz, mostrando-lhe as costas por meio de espelhos.
Nicola estava acostumado aos vergões nas costas, formados pelas várias vezes em que apanhou de seu pai adotivo, mas a mais recente tinha sido muito funda, então o sangue coagulou na roupa sem Nicola perceber, e a camisa teve que ser arrancada com carne viva e tudo. O sangue voltou a pingar um pouco, até que Mary passou um pouco de tintura de iodo, fazendo Nicola gemer um pouco.
- Ok, garoto, a maior parte do cheiro do gambá estava naquela camisa. Agora, vá tomar um banho e use esse sabão aqui. - ela entrega uma barra de sabão de cinzas para Nicola - Esfregue bem as costas e volte aqui para curarmos essas feridas. Enquanto isso, vou ver se tem alguma roupa aqui no circo que te sirva.
- Eu tenho roupas aqui na minha mochila. - disse Nicola
- Eu sei que tem, garoto. - disse Mary - Mas primeiro temos que ver se a mamãe gambá que te perfumou deixou alguma roupa sua perfumada. Sabe que não dá para tirar facilmente esse perfume das roupas, certo? Depois vamos falar com o dono do circo para ver como você pode ajudar.
Nicola fez que sim com a cabeça e se dirigiu a um pequeno local fora da tenda onde poderia tomar um banho, levado por Pyg.
Enquanto isso, Mary foi em outra direção.
Como de costume, Frederick estava levantado, treinando um pouco das suas expressões para os truques de Mentalismo antes de ir tomar seu café da manhã.
Boa parte da arte de sujeitar as mentes mais fracas, ele sabia, envolvia utilizar-se de expressões ameaçadoras, que instintivamente travavam o ser humano. Esse tipo de expressão era decisiva na hora de enfraquecer a vontade do outro, preparando o caminho para seguir adiante com o truque de mentalismo ao deixá-la mais aberta à sugestão mental.
Ele faz uma expressão ameaçadora, quando ouve alguém chamá-lo à porta:
- Fred, é a Mary!
Frederick sabe que Mary está ali: muito poucas pessoas, mesmo no Clube do Século, o chamariam de Fred. No circo, apenas Mary o chama assim. Os demais costumam o chamar de Frederick ou, quando dentro da Grande Tenda, Don Cagliostro.
- Só um minuto. - ele diz.
Mary Alethea, como se autodenomina, é uma das patrocinadoras do Clube, nascida no dia 1° de Janeiro de uma década, que não a virada do século. No caso, ela nasceu em 1° de Janeiro de 1870. Sendo uma das patrocinadoras, é ela quem ajuda os Centuriões, ou Espíritos do Século Passado, encontrar os novos Espíritos e os encaminhar ao Clube para treinamento.
Mary conheceu Frederick quando sua família fugiu da Prússia para a América e a mesma foi protegida por Frederick. Quando “acabou o prazo” de Frederick e ele começou a envelhecer, foi Mary quem convenceu-o a procurar um Espírito para treinar como legado.
- O que foi… - ele diz, enquanto Mary entrava na carroça.
- Fred, acho que encontrei o garoto que procurávamos. Ele veio até o circo. - disse Mary
- Tem certeza? Viu algum documento? Sabe que as certidões de nascimento não são muito confiáveis. - disse Frederick
- Não vi os documentos, mas… Olha só… O garoto dormiu encostado naquela árvore onde tem uma gambá com filhotes, sabe. - ela disse, e ele fez que sim com a cabeça - Sabe como aquela mamãe gambá é durona, ainda mais agora que está com filhotes. Pois bem, ela deu um “presentinho” para esse garoto, dando uma borrifada bem feia nele, mas sem nenhuma agressão. Nada de tentar morder ou qualquer coisa do gênero. Além disso… Eu percebi umas cicatrizes e machucados nas costas dele de cintadas. Lembra do que lhe falei sobre o Espírito do Século XX que procurávamos?
- Sim: Chagas não merecidas.
- Isso. Olha só: eu não imagino um garotinho como aquele, quase um anjo na terra, merecendo ficar com as costas marcadas daquele jeito. Ele foi muito machucado e ainda assim suportou, e pelo que entendi, sem reclamar. E ele não parece se abalar com nada: mesmo cheirando a gambá ele estava muito tranquilo, quase como se soubesse que iríamos o ajudar.
- Será que ele apenas não é um desses garotos anjinhos que andam por aí? Tem muitos desses órfãos abandonados por suas famílias nesse país. - disse Frederick
- Pode ser… Mas… Olha só: você sabe do meu Olho Divinatório, né? - diz Mary, e Frederick confirma: a heterocromia dos olhos de Mary não era apenas um traço genético, mas carregava pequenos poderes místicos, verdadeiros até uma certa escala. - Então: eu não consegui tirar meus olhos dele… É como… É como se ele pedisse um colo. Não sei explicar.
Frederick percebe que a coisa pode ser séria: um Dom de um Espírito do Século pode realmente explicar esse gatilho maternal que Mary sofreu.
- Compreendo. Bem, vamos fazer de conta que não tem nada ocorrendo. Na pior das hipóteses, pelo que você está me dizendo, esse garoto não é mal, mesmo não seja aquele a quem procuramos. Portanto ele não fará mal ao circo. Podemos o ajudar e depois continuar nossa busca com calma. - diz Frederick - E onde ele está agora?
- Tomando um banho, coitado. Deve ter sido realmente linchado para ter apagado a tal ponto de não ter reparado, no meio do sono, que levou uma borrifada de uma gambá. O cheiro de um gambá é tão ruim que faria uma pessoa acordar na hora, para fugir igual maluco. - diz Mary.
- Muito bem: verei o tal garoto no café. Acho que ele já deve estar saindo do banho agora. Vá lá cuidar dele. Me encontrarei logo com você. - diz Frederick
Nicola percebeu o quanto realmente estava machucado quando esfregou as costas com o sabão de cinzas. O cheiro dele era leve, mas o efeito era óbvio, a queimação nas costas indicando a desinfecção de suas feridas.
Rapidamente ele terminou seu banho e vestiu apenas a cueca e as calças, não tendo mais nada para vestir, e retornou até a tenda de Mary. Ela então verificou se ele estava bem limpo.
- Agora está bem melhor. - disse Mary, aprovando o estado de limpeza de Nicola, enquanto passava novamente tintura de iodo e arnica nos ferimentos de Nicola, o que o fez gemer um pouco. - Arrumei uma camisa que deve dar por hoje. E isso aqui acho que é seu, né?
Ela mostra para Nicola um escapulário de Nossa Senhora do Carmo e uma boina em tecido xadrez vermelho e preto.
- Aparentemente nem a mamãe gambá teve coragem de deixar seu perfume nisso… Deve ser algo realmente muito, mas muito importante. - comentou Mary, enquanto Nicola pegava os mesmos com muito carinho.
- Sim… São as únicas coisas que tenho dos meus pais. - Nicola disse
- Imaginei. E aqui está a sua mochila com os documentos que estavam nela. - disse Mary - Pode ficar à vontade para checar.
- Não preciso. Eu sei que você seria incapaz de roubar esses documentos. - disse Nicola
- Já lhe disseram que você é bem bonzinho? E para nunca confiar em ciganos? - disse Mary
- Já… Mas sabe… Nunca soube explicar, mas não consigo desconfiar das pessoas.
Mary sorri:
- É bom ver alguém tratando a gente de maneira decente, para variar. - disse Mary, enquanto Nicola colocava a camisa simples de algodão, um pouco maior que ele, mesmo ele sendo um garotinho bem roliço - Desculpe a roupa folgada, mas foi a menor que consegui encontrar com os outros, e vai ter que servir até conseguirmos lavar aquelas suas roupas e tirar o cheiro de gambá delas. A que você estava usando infelizmente vamos ter que jogar fora: o sangue e a borrifada de gambá acabaram estragando-a.
Nicola meneia a cabeça
- Tudo bem.
- Agora vou levar você até a tenda da comida: acho que hoje o Franck deve ter feito panquecas. Franck é nosso homem-forte. Apesar de forte como um touro, ele sabe ser delicado quando precisa. Além disso, é um excelente cozinheiro: podemos trazer qualquer gororoba e ele a transforma em uma comida dos deuses. Obviamente, a fome dá uma temperada a mais na comida. - diz Mary, ao ouvir o estômago de Nicola roncar.
Nicola caminha até a tenda, enquanto vê todos os artistas andando pelo fundo do circo: alguns estão treinando seus números, outros arrumando detalhes de suas roupas ou equipamentos, outros dando comida para os animais, alguns conversando entre si.
Curioso é que, onde muitos veriam apenas um conjunto de pessoas estranhas, ele via um ar familiar: mesmo quando via o anão conversar com alguém do freak show, todos pareciam gostar uns dos outros, como uma família, algo que, Nicola jamais admitiria, ele sentia muita falta e desejava mais que todo o ouro do mundo.
Ao entrar na tenda de comida, ele sente o cheiro de mingau, pão tostado na manteiga, ovos e bacon, e panquecas. Ele olhou tudo com fome nos olhos e felicidade estampada no rosto, enquanto via um homem enorme, com músculos quase do seu tamanho, virando as grossas e douradas panquecas com movimentos ágeis e precisos incompatíveis com os braços poderosos do mesmo.
- Franck, esse aqui é o Nicola, e ele fugiu de casa e veio parar aqui no circo. Disse que hoje pode ajudar a gente, mas sabe como é, saco vazio não para em pé. Dá para ajeitar algo para ele? E para mim, o de sempre. - disse Mary.
- Oui, mademoiselle Mary. Mas o senhor McNash está sabendo que você trouxe outro garoto sem lar? - disse Franck
- Deixa que eu me entendo com o senhor McNash depois, Franck. Esse rapazinho apanhou bastante por aí e, para ajudar, dormiu debaixo daquela árvore da mamãe gambá. Acho que ele precisa de algo para o animar de volta. - disse Mary.
- Oui! - disse Franck, colocando algumas panquecas e um ovo em um prato. Em seguida pegou um copo de leite e colocou um pouco de mel no mesmo e passou tudo para Nicola, enquanto fazia um prato de ovos com bacon e café preto para Mary.
Nicola sentou-se e começou a comer, enquanto observava as pessoas entrando naquele refeitório improvisado. Foi quando ele viu o homem que o fascinara na noite anterior, com os cabelos grisalhos bem penteados, bigode preto lustroso e cavanhaque: Don Cagliostro!
- Franck, vou querer só umas torradas e café hoje, por favor. - disse Don Cagliostro, e Nicola percebeu que, apesar da visão intimidadora, mesmo sem a cartola e o fraque dos shows, a voz dele parecia confortante, bem diferente da voz soturna e dura do show.
Nicola ficou bobo ao ver Don Cagliostro dirigindo-se à mesa onde ele estava, com um prato de torradas amanteigadas e uma caneca de café bem escuro. Ele ficou ainda mais abestalhado ao ver Don Cagliostro sentando-se na mesma mesa.
- Olá, Mary! - disse Frederick, fazendo-se de inocente. Ele observou o garotinho de cabelos levemente avermelhados à sua esquerda, enquanto este o olhava como se visse o Papai Noel. “Realmente ele é tão inocente quanto Mary afirmou”, pensa Frederick, e ele sente uma leve presença, reconfortante e cálida, quando pergunta, como quem não quer nada. - E quem é esse garoto?
- O Pyg trouxe ele para mim. Ele tava dormindo na árvore da mamãe gambá e, bem, ela o marcou bem marcado. Ele tava bem fedido na hora que ele chegou. Mas agora tá limpinho como um anjo. Depois vou conversar com o Senhor McNash e ver se ele pode ficar conosco um dia ou dois, pelo menos até ele ficar bem longe daqui. - diz Mary. - Parece que ninguém o quer nessa cidade. O coitadinho apanhou bastante.
Nicola enrubesceu à menção dos ferimentos às suas costas: normalmente ele não reclama de nada, preferindo guardar suas forças para fazer algo que seja possível contra aquilo. Se não for… Bem, c’ést la viè, como diria Madame Le Pen da aula de francês da escola.
- Meu nome é Frederick Van Der Merwe. E o seu? - disse Frederick, enquanto Nicola o olha assustado por aquele artista maravilhoso lhe dirigir a palavra.
- Meu nome é Nicola Castrogiovanni, senhor… Mas achava que o senhor fosse o Don Cagliostro. - disse Nicola, quando ele conseguiu falar. Frederick riu com gosto.
- Então, pelo jeito você gostou dos meus truques e do meu número. - disse Frederick, tomando um pouco de café, observando as reações de Nicola - Don Cagliostro é o nome que assumo no show. Mas aqui sou conhecido como Frederick por todos. Quem sabe você não ganha um nome próprio durante o show, caso fique aqui conosco? Mas, mudando de assunto, por que fugiu de casa?
Nicola fica um pouco em silêncio: ele não quer contar que seu pai adotivo queria o matar e que, para impedir uma tragédia maior, sua mãe adotiva o expulsou de casa. Mas achou que não poderia escapar ileso em contar os seus motivos, então decidiu apenas omitir um pouco da verdade.
- Sabe, meu pai adotivo não gostava muito de mim, e deixava que meu irmão me maltratasse. Além disso, ele me batia muito. Então, ontem à noite fui mandado para os estábulos por algo que na verdade foi meu irmão quem fez. Minha mãe adotiva me deu tudo o que precisava para fugir antes de me mandar para o estábulo. Ela tinha medo que, cedo ou tarde, meu pai adotivo me batesse até eu morrer. Então, eu fugi. Aí deitei debaixo daquela árvore, sem saber que tinha uma mamãe gambá lá. E acordei com o Senhor Pyg me avisando que eu estava fedido de gambá. - diz Nicola, ao mesmo tempo tirando a questão da possibilidade de ser morto e dando uma enfeitada, como se tivesse vivido uma grande aventura.
Frederick o olha com um dos olhares especialmente treinados que ele fazia para executar os truques de mesmerismo, tentando ver se ele estava mentindo, tentando o assustar, e conseguir um caminho para usar seus truques de mesmerismo para obter a verdade caso assim fosse. Entretanto, Nicola o olhava com o mesmo olhar inocente que tinha desde o início, sem se deixar abalar pelos olhares mesmerísticos.
“Os Olhos nunca mentem, é a primeira regra do Clube do Século.“ pensa Frederick, enquanto relaxa o rosto: se não for o Espírito que está procurando, ao menos não é uma Sombra, pelo menos até onde ele percebeu.
- Bem, então eles realmente não sabem o que fazem, né? Machucar um anjo como você? Você parece um garotinho realmente muito bom. - disse Frederick, sorrindo - Agora, termine seu café, e vejamos como você poderá pagar por tudo isso. Sabe que nada é de graça nessa vida. Eu sei que provavelmente não tem dinheiro, mas sempre precisamos de ajuda para organizar tudo até a hora do espetáculo.
- Será que poderei participar do show? - disse Nicola, esperançoso, já que não tem mais nada a perder.
- Isso iremos ver. - disse Frederick, sorrindo - De qualquer forma, é importante vermos o Senhor McNash. Ele não gosta de come-e-dormes aqui, e muito menos de clandestinos. Mas veremos o que podemos fazer por você.
O Senhor Alvin McNash era dono do McNash & Sullivan Circus and Shows por tradição de família: seu pai foi o dono do circo e o mestre de picadeiro antes dele, e o pai dele antes dele.
E uma coisa que McNash não admitia era coisas fora do lugar. Ele demonstrava isso ao nunca, jamais ser visto vestindo outra roupa que o fraque de cerimônia do mestre do picadeiro, seja dentro ou fora dele.
Além disso, ele sempre fazia de tudo para estar apresentável, não importasse o tempo, a temperatura ou qualquer circunstância.
- Sr. McNash, é o Frederick. Tem um minuto? - diz Frederick fora da carroça do mesmo.
- Só um instante. - diz McNash, enquanto ajeita o fraque.
Ao abrir a porta da carroça, ele vê Frederick com Mary e Nicola. Ele suspira e diz
- Outro garoto órfão, Frederick?
- Senhor, o Pyg encontrou esse garotinho deitado diante da árvore da mamãe gambá, dormindo mesmo depois de tomar uma bela borrifada da mesma. Mary deu um banho nele e ele comeu algumas panquecas que o Franck fez. Na realidade, o Nicola aqui já deixou claro que está disposto a trabalhar para pagar pela comida que comer. Acho que podemos colocar ele para trabalhar sem problemas. Ele não parece ser do tipo que nega trabalho.
- Hummm… - diz McNash. Os outros órfãos ocasionalmente recolhidos pelo circo eram um bando de come-e-dorme. Mas por algum motivo esse garoto parece diferente para McNash: ele parece ter vigor e vontade de trabalhar, o que os demais não tinham, e tem um olhar bastante diferente, esperançoso. Parece que esse é um garoto realmente diferente.
- Está bem: mande ele para ajudar o Pyg e o Roland com os animais. - disse McNash - Depois disso, vamos ver se tem algo que ele possa fazer na lona, nem que seja vender pipoca ou amendoim. Espero que você se comporte e faça seu trabalho direitinho. - disse McNash, voltando-se para Nicola, com um olhar sério, severo, mas de certa forma doce e acalentador.
- Sim, senhor. Prometo fazer tudo bem direitinho, e aprender a fazer o serviço logo. - disse Nicola, com convicção.
- Ótimo… Gosto da sua Atitude. Então, vamos lá! - disse McNash, acompanhando Frederick e Mary para levar Nicola para seu serviço.
Roland MacIntyre, descendente de Escoceses, tinha um corpo baixo e forte, quase tão forte quanto Franck, e herdou do pai a profissão de domador de animais.
Diferentemente da maioria, entretanto, ele procurava demonstrar que o respeito aos animais era o caminho para fazer eles fazerem o que ele pedia, sem precisar apelar excessivamente ao chicote ou à violência.
Nesse momento ele estava cuidando de Eliah, a enorme elefanta que era o animal mais importante do circo, com a ajuda de Pyg, quando McNash, Frederick, Mary e Nicola se aproximam:
- Olha só, é o garoto da árvore. - disse Pyg, sorrindo, enquanto esfregava o lado de Elian com uma vassoura molhada em sabão - O Sr. McNash aprovou ele aqui?
- Ainda não sabemos. - disse McNash - Mas ao menos por hoje ele trabalha aqui para pagar pelo que comer. Roland, acho que um par de braços a mais podem ser úteis no seu serviço.
- Acho que sim, temos muito serviço hoje. - disse Roland, enquanto os demais voltavam aos seus afazeres, deixando Nicola com ele.
- Qual o seu nome, garoto?
Nicola responde e então Roland diz:
- Muito bem, Nicola… A primeira coisa que você vai nos ajudar a fazer é dar um banho na Eliah aqui. Use uma dessas vassouras que estão perto de você para esfregar a parte de trás dela. Não faça força demais: isso pode machucá-la e ela não gosta disso. Ao mesmo tempo, não faça corpo mole: a pele de um elefante é bem grossa, então para tirar a sujeira exige muita força. Acha que consegue dar conta?
- Acho que sim. Pelo menos, vou fazer o melhor. - disse Nicola
- Muito bem. Gostei da atitude. - disse Roland - Melhor tirar a camisa, pois vai se molhar bastante. - disse Roland
Nicola retirou a camisa e pegou uma das grandes e pesadas vassouras, molhando-a na água com sabão. Obviamente de início teve alguma dificuldade, mas logo estava ajudando a limpar Eliah.
Ele descobriu logo a melhor forma de passar a vassoura em Eliah para limpá-la sem machucá-la. Ela deu alguns urros de felicidade, o que de início assustou Nicola, mas conforme ele se acostumou, ficou feliz com a felicidade de Eliah, enquanto terminava de dar o seu banho, deixando-a bem limpa. Ele estava cansado e suado, mas havia um sorriso no rosto de Nicola que deixou Roland bastante feliz.
- Muito bom, garoto, acho que você leva jeito para a vida de circo. Agora vamos dar comida ao velho Khan, o leão. - disse Roland, indo para a jaula do Leão.
- Duas palavras ao lidar com animais: Respeito e Prudência. O Velho Khan é quase um gatinho doméstico, mas não é por isso que devemos baixar a guarda. - disse Roland, quando chegaram perto da jaula, enquanto Pyg, que havia saído um pouco mais cedo, trouxe um balde com várias peças de carne crua ainda sangrando, incluindo as vísceras. - Espero que não se importe em mexer com carne crua. - disse Roland.
Na realidade, Nicola nunca mexeu antes com carne crua, mas ele não queria parecer covarde ou molenga, ainda mais pensando que o circo podia ser sua melhor oportunidade agora que tinha fugido de casa.
- Tudo bem, acho que me aguento - disse Nicola, enquanto pegava partes da carne crua ainda em seu sangue no balde.
Foi algo demorado e sujo, além do fato que a jaula de Khan, ainda que enorme, era fedorenta devido aos excrementos do Leão em questão. Mas o Leão, ainda que rugisse, parecia gostar um tanto dos cuidados de Roland, a quem agora Nicola ajudava.
- Mas ele não sai da jaula? - perguntou Nicola, enquanto ainda colocava, soltando pela grade, alguns pedaços grandes de carne crua para Khan.
- Normalmente não deixamos ele sair de fora da jaula quando não há apresentações, devido à segurança, mas temos alguns locais onde podemos colocar ele em cercados maiores, de modo que ele possa esticar as pernas com segurança. - disse Roland - Não acho que ele goste muito, mas infelizmente não tem como deixar muito espaço: creia-me, adoraria ter alguns acres de terra onde pudesse deixar o Khan aqui andar à vontade.
- Entendo… - disse Nicola
Depois de Khan, Nicola passou a colocar a ração para os hipopótamos. Não era muito diferente do que dar a ração para os cavalos na fazenda, pensou Nicola, apesar dos baldes de ração serem enormes. Ao terminar, ele estava esbaforido, mas bastante feliz.
- Você é um bom garoto, Nicola. - disse Roland, enquanto lavavam as mãos e enxugavam o pior do suor - Espero que o senhor McNash aceite-o no circo. Precisamos de pessoas como você aqui. Bem, tá na hora da bóia. Espero que não se importe com um pouco de chili.
- Não senhor. - respondeu Nicola
- E acho que o Pyg vai arrumar um lugar para você no show. Nada muito grande, mas você parece ser um garotinho cheio de talentos. - respondeu Roland.
Nicola comeu um belo prato de chili con carne que o homem-forte Franck fez. Era como Mary dizia: a fome era um bom tempero para a comida. Depois de um copo de limonada fresquinha que Franck lhe arrumou como sobremesa, ele acompanhou Pyg para a tenda dos palhaços.
- Olha só, Nicola: a maioria dos shows do circo são shows de agilidade, graciosidade ou força, o que, não quero ser chato, você não aparenta ter. Então conversei com o Sr. McNash, e decidimos incluir você nos shows dos palhaços por agora, até vermos se você possui outros talentos úteis. A gente cobre a ação, sabe: enquanto estão organizando o picadeiro para o próximo número, nós fazemos nossas palhaçadas e chamamos a atenção do público. Vamos primeiros ver como você se sai em certas coisas para ver como podemos o encaixar no show.
Nicola assentiu, quando começou a fazer tudo o que Pyg falava:
- Dê uma corrida… Cambalhota… Salto Mortal… É, você deverá evitar isso por agora. - disse Pyg, enquanto oferecia uma mão para Nicola, que caiu de bunda no chão - Corra sem sair do lugar. Isso, muito bom. Agora, comece a imitar meus movimentos. - disse Pyg, começando a andar com passos bem largos e as mãos bem esticadas, depois dando pequenos pulinhos, fazendo gestos expansivos com as mãos, entre outras tantas coisas.
- Hummm… Nada mal para um Primeiro de Maio… - disse Pyg
- Primeiro de Maio?! Mas estamos ainda no início de Março. - disse Nicola
Pyg começou a rir, o que fez Nicola se envergonhar, enquanto Pyg o conduzia a algumas cadeiras velhas diante de algumas penteadeiras
- Primeiro de Maio é como chamamos no circo os novatos. Isso porque circos grandes como o Ringling Bros contratam os artistas por temporada, de maio a por volta de novembro. Então, todo mundo começa no circo no dia Primeiro de Maio. Nosso circo é menor, portanto precisamos trabalhar mais, só folgando entre Dezembro e o início de Fevereiro. - disse Pyg, fazendo Nicola sentar-se em uma banqueta diante de uma das penteadeiras.
- Ok… Agora já tenho ideia de como podemos trabalhar o nosso número com você. Vou explicar sua posição no número logo. Primeiro, deixe-me ver como vamos fazer sua maquiagem. - ele disse.
- Todo palhaço precisa de maquiagem? - disse Nicola, ao ver sobre a penteadeira uma série de pequenos potes coloridos.
- Sim… Mas essa maquiagem não é para esconder nosso rosto, mas, ao contrário, para enfatizar nossas expressões mais engraçadas. Lembre-se que nossa função, além de chamar a atenção, é fazer rir. Primeiro, quero que demonstre, com o rosto, os sentimentos que eu pedir para você.
E Pyg começou a falar os vários sentimentos, como felicidade, tristeza, raiva, surpresa, e também vários tipos de caras bem bobas. Nicola até que começou a gostar disso: era muito divertido.
- Ok. Acho que já temos a ideia de que tipo de maquiagem podemos fazer em você. Agora, observe como eu vou fazer porque, você continuando no circo, deverá fazer a maquiagem você mesmo. - disse Pyg, sentando-se no colo de Nicola, passando um pano no rosto dele para limpar o mesmo antes de começar a pintar o rosto de Nicola.
Não muito distante do circo, um grupo de garotos estava observando outras crianças voltarem da escola. Nenhuma criança chegava perto desse grupo: todos sabiam que essa era o pior grupo de garotos da cidade, e ninguém queria mexer com eles. E como eles ficavam perto de um cruzamento que dava acesso à escola para a maioria das crianças, elas davam a volta, tomando um caminho maior.
Isso realmente os divertia, embora eles estivessem com um olhar chateado, enquanto um deles fumava um cigarro, obviamente roubado de alguém:
- Estou chateado. - disse um garoto de cabelos de fogo e um olhar de doninha - Aquele pivete era muito divertido. A gente podia quebrar ele na pancada que ele nunca reclamava.
- Você diz isso porque você não morava com ele, Colin. - disse o garoto fumante, de cabelos morenos e olhos bem verdes - Não aguentava aquele bonzinho. Graças a Deus ele fugiu, apesar que ia ser legal ver meu pai acabar com ele.
- Mas, Josh, agora não temos mais diversão. Ele era o único que passava por aqui. - disse outro garoto, com cabelos negros e um olhar malvado.
- Gente, tive uma ideia… - disse Josh - Que tal se formos fazer bagunça no circo. Podemos fazer toda a arruaça que quisermos, que a cidade não vai fazer nada contra nós! Afinal de contas, são forasteiros!
- Parece uma boa ideia… Mas vai ser melhor ainda se fizermos isso durante a matinê. - disse o garoto de cabelos negros
- Isso, Aaron. - respondeu Josh - Acho que podemos fazer uma boa arruaça lá!
E eles continuaram conversando sobre seu plano malvado.
Obviamente todos eles tinham ido já ao circo, mas nunca tirando os centavos da entrada de seus bolsos: eles acabavam roubando os ingressos de outras crianças ou simplesmente entrando por debaixo da tenda quando podiam, já que todos eram fortes e ágeis o bastante para evitar os guardas do circo.
Então eles sabiam como planejar uma grande confusão.
- Ok… Esse é nosso número principal. Conseguiu entender, Nicola? - disse Pyg, enquanto os demais palhaços se aproximavam de Nicola, que sentou-se no anel que circundava o picadeiro.
Nicola estava com a roupa de marinheiro azul, calções da mesma cor e uma boina, uma peruca de lã rosa bebê debaixo da boina.
Coube-lhe o papel de um dos filhos que tinham que pular do “prédio em chamas” no número do incêndio, na verdade uma armação de madeira e cartolina, com celofane passando-se pelas chamas.
- Entendi… O meu papel é o de um menininho fofo, isso?
- Sim. Apesar que não é muito diferente de quem você é mesmo, né? - disse um dos palhaços maiores.
Todos riram, inclusive Nicola, o que destacou as bochechas em vermelho e os lábios pintados em branco e preto, esticando a “boca” pintada a um ponto muito cômico, o seu narizinho de botão pintado em um vermelho vibrante. Seu rosto pintado de palhaço o fazia parecer ainda mais um anjinho, já que ele ficava ainda mais com cara de bebê, como um garoto que só recentemente tinha deixado para trás as fraldas.
- Sim, entendi o meu papel. - disse Nicola, enquanto saia do picadeiro, usando o caminhar engraçado que Pyg lhe ensinara, o que, apesar de difícil de início, era a maneira mais adequada para andar com os sapatos quase 10 números maiores que o dele.
- Muito bem, vamos comer alguma coisa rápida e nos preparar para a matinê. - disse Pyg.
Mary abriu o Tarô diante de Frederick relativo a Nicola. Quando ela virou a penúltima das cartas, ela levou a mão aos lábios!
- Meu Deus! Por que? - ela disse, ao ver o desenho da Torre atingida por um Raio, várias pessoas caindo da mesma
- Mm… Isso não é nada bom. - disse Frederick, com sua típica fleuma
- Nada bom? Isso é terrível! Que tipo de Destino pode estar esperando esse menino? - disse Mary, assustada.
- Então, pode ser realmente que esse menino seja a pessoa que estamos procurando. O Clube já está sabendo? Talvez devemos abandonar o circo antes do tempo e voltarmos para Omaha, para a sede do Clube lá, para começarmos o treinamento do mesmo como Espírito do Século. - disse Frederick, ignorando de início o susto de Mary. Depois ele voltou-se para Mary e, vendo o horror estampando em seu rosto, disse reconfortante - Ainda não podemos dizer qual Destino espera esse menino. Ainda tem uma carta a ser aberta.
- Vejamos… - disse ela, ao abrir a última carta, ao centro da cruz que ela dispôs na mesa.
Ao virar a carta, ela viu o desenho da pessoa, cercada por uma mandala de folhas, como os Louros dados aos Campeões Olímpicos, aos cantos da carta um homem, uma águia, um leão e um touro.
- Ora só… - disse Frederick, aliviado e sorridente - Acho que estávamos nos preocupando excessivamente.
- O Mundo! - disse ela - Nunca tinha aberto O Mundo no futuro. Um símbolo de ascensão, para mais longe e acima da terra, alcançando o céu!
- Então, podemos nos descontrair um pouco… Se o Destino dele for ser um dos Espíritos do Século XX, então nada lhe ocorrerá. Senão… Infelizmente não poderemos fazer muita coisa por eles. - disse Frederick - De qualquer movo, vejamos como nosso pequeno palhacinho está lidando com sua nova vida.
A matinê começou muito bem, sendo que rapidamente Nicola conseguiu entender as entradas dos palhaços e seu papel neles. Todos os Palhaços olharam Nicola a cada saída depois de organizados os números e perceberam a evolução do mesmo.
- Puxa vida, Nicola! - disse Pyg, ao passarem pelas cortinas que dividiam os bastidores do picadeiro - Estou no circo a mais de 20 anos e nunca vi alguém aprender tão rápido a arte do palhaço. Estou realmente orgulhoso!
- Obrigado, senhor Pyg. - disse Nicola, esbaforido, cansado com os movimentos rápidos que tinha que fazer para as palhaçadas, no meio das roupas folgadas e usando sapatos desengonçados - Não imaginava que seria tão difícil.
- Que nada! - disse Pyg - Você está indo bem! Agora, vamos nos preparar para o nosso número principal. - ele disse, enquanto os funcionários do circo montavam o “prédio em chamas”, pouco depois da apresentação de Khan, o leão.
Dois dos garotos da turma pegaram Roland e o socaram até o desacordar, antes do mesmo poder trancar a jaula de Khan, o Leão, depois de a travar.
- Ok, o tratador está nocauteado. - disse Aaron. - E agora?
- Colin, fique na entrada da tenda. Assim que eu abrir a jaula, use o estilingue para o acertar no rosto. Isso vai deixar ele muito bravo. Saia do caminho, senão ele vai te atacar. A ideia é dar um bom susto em todo mundo quando o leão fugir para o picadeiro. Agora é o show dos palhaços, então ninguém vai dar, ao menos de início, muita atenção para lugar nenhum… Esse será a hora para nós fugirmos! - disse Josh
- Certo! Pode ir! - disse Colin
Josh abriu a jaula, e Colin atacou Khan.
Khan sentiu uma forte dor no focinho: nada capaz de o machucar, mas o suficiente para o enfurecer e fazer ele saltar da jaula e correr na direção de Colin, que percebeu, tarde demais, que não teria tempo de fugir.
- Corre, Colin! - disse Josh, meio preocupado, meio divertido, como se tudo não passasse de um rodeio.
Afinal, não era ele que estava fugindo de um leão furioso.
Nicola estava no alto do “prédio em chamas”, enquanto Pyg, embaixo, gritava como se ele fosse seu “filhinho”, cercado pelas “chamas” de celofane no alto da torre.
Tudo que Nicola precisava fazer era cara de choro e fingir-se assustado, até que os demais palhaços armassem a cama elástica para ele pular do “prédio” em segurança.
Foi quando ele começou a ouvir Stars and Stripes Forever.
Isso acionou na cabeça dele uma coisa que Pyg lhe disse enquanto ele perguntava sobre o circo, enquanto o mesmo o maquiava pela primeira vez.
- Se, a qualquer momento no show, você ouvir a música “Stars and Stripes Forever”, - disse Pyg, enquanto passava o dedo com a maquiagem sobre o rosto de Nicola - aconteça o que acontecer, mantenha a compostura. Essa é uma música de alerta para todos do circo de que algo realmente sério aconteceu. Normalmente, nessas horas nós temos que fazer nossas palhaçadas para manter o público calmo para que todos saiam do circo em segurança… Acho que só ouvi essa música uma vez, antes de um furacão daqueles vir na direção do circo. Essa é única situação em que a banda toca essa música. Não a toa a chamamos de “A Marcha do Desastre”
E ali estava a banda do circo tocando… “A Marcha do Desastre”
Nesse momento, ele manteve a calma e continuou seu show, enquanto boa parte do público era evacuado pelos funcionários do circo. Porém, ele estava um pouco assustado, já que o “prédio em chamas” era muito pequeno e razoavelmente alto, só tendo espaço para os palhaços que lá ficavam. E ele era o único no alto do “prédio” no momento.
Ele continuou no seu ato, mas ao mesmo tempo tentava de todas as formas observar qual era o motivo da Marcha do Desastre estar tocando.
Foi quando ele viu, na entrada do picadeiro, um garoto correndo de Khan, que parecia enfurecido. Ele viu os demais palhaços embaixo saindo correndo, e isso o deixou um pouco assustando, já que ele não tinha como descer.
Por outro lado, até onde ele sabia, leões não escalavam árvores. Portanto, no alto do “prédio em chamas”, no momento ele estava mais seguro que as pessoas no chão.
Alguns instantes antes…
Frederick foi quem viu os garotos tentando fugir depois de aprontarem. Ele utilizou um truque que aprendeu com Gaúcho, o antigo Espírito dos Pampas, pegando boleadeiras e jogando nos pés dos dois garotos.
- O que vocês estão fazendo? - disse Frederick para os dois garotos que estavam fugindo, enquanto Mary foi para próximo da entrada dos fundos do circo.
- Eles nocautearam Roland e deixaram o Khan furioso! - disse Mary, ainda nos seus trajes ciganos que usava na tenda de adivinhação, lendo cartas e o Tarô para as pessoas.
- Mary, corra para a banda e mande eles tocarem a Marcha do Desastre. Normalmente Khan não ataca as pessoas, mas não sabemos o que ele pode fazer furioso. Não podemos nos arriscar ou ao público! - disse Frederick, quando esta saiu correndo.
Foi quando ele respirou e deixou-se “entrar no personagem” de Don Cagliostro, para dominar as mentes pequenas desses valentões do interior, para eles explicarem seus planos.
Ele assumiu seu melhor rosto mentalista, aquele que ele reservava para os momentos mais sérios, fora das apresentações, uma carranca assustadora capaz de levar mentes ainda mais poderosas que essas pequenas mentes ao pesadelo e, olhando diretamente nos olhos dos valentões, em especial do garoto de olhos verdes, que ele não sabia ser o antigo irmão adotivo de Nicola, disse, no tom de voz baixo e poderoso que ele desenvolveu em um século como Don Cagliostro
- Agora… - ele disse, em um tom baixo e soturno, especialmente treinado, deixando o terror entrar na mente dos garotos, congelando suas reações e preparando-os para as sugestões mentalistas que ele iria aplicar - Vocês estão sob meu poder… Minha mente domina vocês. Vocês não possuem nenhuma vontade. Vão fazer tudo o que desejo, até que eu decida os libertar. E para começar, vocês irão me dizer exatamente o que vocês fizeram e porquê.
Nicola viu Khan correr pelo picadeiro, atrás de um dos garotos, quando esse garoto passou ao lado do “prédio em chamas”. Ele deve ter pensado que teria tempo de se esconder atrás do mesmo, mas Khan passou pelo mesmo, destruindo as placas de madeira como se fossem papel molhado, desequilibrando a torre.
Nicola ainda teve a presença de espírito de segurar-se a algumas das ripas que formavam o suporte, mas isso não foi o suficiente para impedir a queda, ainda que tenha o ajudado a não sofrer muitos danos na mesma.
Depois de alguns momentos de dor, Nicola fez algo que sempre fazia instintivamente: checar por fraturas ou ferimentos sérios. Percebeu que seu tornozelo estava torcido, mas nada demais. Começou a se levantar, imaginando se poderia fugir com o tornozelo torcido.
Foi quando viu um dos valentões da turma de seu irmão, parado como um cervo com uma lanterna na cara. O leão andando a passos lentos para o mesmo, pronto para dar o golpe final para enviar o valentão para O Andar de Baixo, como o mesmo deveria estar imaginando acontecer.
E, pela primeira vez em sua vida, ocorreu a Nicola uma escolha verdadeiramente de vida ou morte.
Ele poderia viver, mas ninguém mais poderia salvar o valentão, pois ele seria devorado antes que alguém chegasse para parar Khan.
Entretanto, se ele chamasse a atenção de Khan, certamente ele próprio teria a chance de morrer, mesmo protegendo a vida do valentão.
E, por algum motivo, Nicola não precisou pensar muito:
- Ei, Khan! Olhe aqui! - gritou Nicola, o valentão assustado ao reconhecer a voz do garoto que ele tanto espancou
Instantes antes…
Frederick entregou os garotos para o senhor McNash, enquanto Pyg tentava acordar Roland.
- Mas que droga! - gritou McNash com os meninos, definitivamente fora da compostura, arremessando a cartola de mestre de picadeiro ao chão - Onde vocês estavam com a cabeça de soltar uma droga de um leão furioso no picadeiro? Que tipo de diversão vocês acham que é essa?
- A gente queira apenas… - ia dizer Josh timidamente, quando um dos palhaços correu para eles.
- Senhor, temos problemas! Khan derrubou o “prédio em chamas” quando o outro garoto tentou se esconder atrás do mesmo. Nicola acabou caindo no chão e agora ele está tentando enfrentar Khan! - disse o palhaço.
McNash ficou apavorado: um garoto sendo devorado por um leão seria uma tragédia!!!
- Pyg, faça de tudo para reacordar Roland e o colocar de volta em condição de domar Khan! Não tem a menor chance de Nicola parar o Khan, ainda mais com ele furioso. Eu vou lá ver o que posso fazer. Fred, venha comigo. Você, - disse McNash ao palhaço - corra e chame a polícia. E vocês dois… - disse McNash para os valentões, enfurecido - Juro por tudo que há de mais sagrado no Céu e na Terra: se algo acontecer a esse circo… Se algum tragédia acontecer debaixo dessa lona e resultar no fim desse circo, podem ter certeza de que será nela que vocês serão enterrados!
A mente de Josh nunca foi muito usada, mas agora estava paralisada.
Primeiro, ao ver os olhos terríveis de Don Cagliostro, que abriram sua mente como se a tampa de seu crânio fosse uma tampinha de garrafa e aqueles olhos fossem o abridor. Ele sentiu-se drenado de sua vontade como nunca sentira…
E agora ouvira que Nicola estava tentando enfrentar aquele leão.
Em que mundo ele estava?
Em que mundo Nicola se envolvera?
Khan voltou-se para o garoto que gritou.
Na hora em que Nicola viu os olhos de Khan, ele sentiu muito medo, ao ver a fúria, justificada, em Khan.
Mas ao mesmo tempo, em sua cabeça, veio aquela pequena vozinha que sempre vinha em todos os momentos em que ele tinha medo, pavor, ou apreensão.
“Vai tudo dar certo no fim… Se não deu certo, é porque ainda não acabou.”
Ele procurou se acalmar, seu coração voltando ao ritmo normal. Então, ele se lembrou do que Roland disse:
“Duas palavras ao lidar com animais: Respeito e Prudência. O Velho Khan é quase um gatinho doméstico, mas não é por isso que devemos baixar a guarda.
Ele respirou fundo e olhou para Khan, procurando deixar claro que respeitava Khan.
- Khan, sou eu, Nicola. Acho que você lembra de mim, quando dei seu café hoje de manhã. Espero que tenha gostado. - ele disse, sem nem entender porque estava tentando falar com um leão.
Khan continuava a avançar lentamente, quando McNash e Frederick entraram no picadeiro, já vazio, exceto por Khan, Nicola e o valentão. A situação era muito surreal para eles, vendo o valentão parado de medo no chão, mas Khan voltado para Nicola, que parecia tranquilo, ou tão atemorizado que ele não conseguia demonstrar.
- Eu sei o que você tá passando: esses garotos são realmente maus. Eu sei disso, pois eles firam muitas maldades comigo. Mas você não precisa fazer algo ruim com eles. Tenho certeza que eles nunca mais vão fazer nada como isso. Ao menos não esse. Ele deve ter aprendido sua lição. - disse Nicola
Khan não parecia comovido, continuando a se mover na direção de Nicola, que começou a demonstrar um pouco do seu nervosismo.
- Olha só. Eu não quero que ninguém se machuque, certo? Nem ele, nem você e muito menos eu. Foi assustador ouvir a Marcha do Desastre no alto do “Prédio em Chamas”… E quando vi você correndo para machucar esse garoto, eu poderia ter pensado em deixar para lá e ele que se virasse, pois ele me fez muitas coisas ruins antes… Mas eu não quero que ele se fira, e tenho certeza que você também não quer ferir ninguém. - disse Nicola, um pouco apavorado, ao perceber que Khan estava próximo o bastante para que ele simplesmente levantasse sua pata e abrisse sua barriga como se descascasse uma laranja.
E foi nesse momento que Khan apenas deu uma soprada em seu rosto, e passou a língua no rosto de Nicola, tornando o rosto dele uma grande meleca de baba de leão e maquiagem de palhaço desfeita, permanecendo parado e com uma face um pouco mais tranquila. Nicola deu umas risadinhas, olhando para Khan com uma mistura de felicidade, susto e alívio.
Nesse momento Roland entrou, pegando uma coleira e passando pelo pescoço de Khan com cuidado, sem apelar ao chicote que ficava, mais a título de enfeite, no cinto de sua roupa de domador de animais:
- Ok, Khan… Calma, garoto. Acabou. Vamos voltar para sua casa. A gente vai dar um jeito nesses garotos. Esses garotos vão ter o que merecem. - disse Roland, recolhendo o leão de volta a seu lar no circo.
Mary correu para Nicola e o abraçou de maneira totalmente maternal, lembrando a Nicola o abraço de sua mãe.
- Nicola… Onde você estava com a cabeça? Enfrentar Khan? - disse Mary. - Você foi muito corajoso… Não sentiu medo ao encarar o Khan?
- Na verdade, - disse ele, agora tremendo que nem vara verde - tive muito medo sim! Mas nessas horas eu sempre penso que as coisas darão certo no final. Se não derem, é porque não acabou. - disse Nicola, surpreendendo os demais pela sabedoria além dos anos.
- Puxa vida, você teve a coragem de um Espírito do Otimismo. - disse Frederick
- Espírito do Otimismo? - disse Nicola, enquanto os valentões eram levados pelos policiais da cidade
- Digamos que você é especial, Nicola. Você nasceu em 1° de Janeiro e tem, agora em 1910, 10 anos, estou certo? - disse Frederick
- Sim… Isso mesmo: segundo o que dizem, nasci ainda quando tocavam as badaladas do Ano Novo na virada do século.
- Exato! Isso mesmo… Isso quer dizer que você tem algo especial… Mas vamos primeiro lavar esse seu rosto todo cheio de baba do Khan e aí conversaremos. - disse Frederick, retirando Nicola do picadeiro, em direção a uma nova vida.
Os dias seguintes foram muito confusos e puxados para Nicola:
Seu ex-irmão adotivo foi levado para a delegacia, e seu ex-pai adotivo foi lá. Nicola acabou falando sobre seu pai, mas trocou a possibilidade de colocar o pai na cadeia pela revisão de sua adoção, sendo que Frederick passou a ser seu pai adotivo. O ex-irmão adotivo foi colocado para ajudar no centro médico da cidade.
Frederick explicou para Nicola tudo o que pode sobre o conflito milenar entre os Espíritos e Sombras de cada Século. E Nicola entendeu seu papel como Espírito do Otimismo, de mostrar a todos exatamente o que lhe passou à cabeça ao enfrentar Khan: tudo dará certo no final, e se não deu, é porque não acabou.
O circo decidiu ir embora da cidade, antes que algum outro garoto mal tivesse alguma ideia perigosa. Na parada de saída, Nicola foi aplaudido por muitos, inclusive por alguns que, alguns dias antes, batiam nele por o acharem esquisito.
Em uma viagem rápida do circo para Omaha, Frederick o apresentou ao Clube do Século, mas deixou claro que ele seria o Mentor de Nicola, trabalhando para o Clube a partir do Circo. Este recebeu investimentos volumosos para incluir uma série de novos equipamentos, inclusive uma rara tenda a prova de fogo e um sistema telégrafo portátil.
E assim começou a história de Nicola Castrogiovanni, o Espírito do Otimismo.
Uma história que obviamente seria com final feliz.
Afinal de contas: se não deu certo, ainda não acabou.